sexta-feira, 30 de julho de 2010

petit bonheur #3

Entra logo no carro que eu prometi pra ela estar lá no máximo às sete.

Peraí, deixa eu pegar meus óculos.

Então anda.

Me dá a chave então, como você quer que eu pegue meus óculos se a porta está trancada?

Toma. Corre.

(...)

Merda, vou ter que parar naquele posto. Tô ficando zerada.

(...)

Vou trocar esse CD hein. Tá foda ouvir sempre essa mulher, com essa voz insuportável.

Tá, faz o que você quiser. Aliás, vou parar mais pra cá que to azul de fome também.

Traz um café pra mim.

(...)

Você deixou de trazer o café pra demorarmos mais tempo aqui nessa porra ou só pra me irritar mesmo? Aliás, a primeira opção fatalmente leva à segunda. Fatalmente.

(...)

Você não vai mesmo falar nada? (...) Vem cá porra, eu não sou homem que gosta de ser tratado feito uma criancinha de colo por mulher nenhuma, você tá me ouvindo? Qual é? Você acha que...

Desce do carro.

Ah, peraí Ísis, vai se foder, para de babaquice.

Eu vou parar o carro ali na frente e você vai descer calmamente, vai gritar as merdas que você quiser, mas vai ser do lado de fora desse caro, você entendeu bem? Não quero ter de repetir isso.
É aquela tua amiga né? Eu sabia, o Lucas já tentou abrir meu olho uma porrada de vezes e eu pagando de babaca pra vocês duas. Vem cá, o que aquela vagabunda tá fazendo com você hein?

Fala, fala porra!

Carlos, eu acho melhor você me soltar.

Não solto enquanto você não falar, outra vagabundazinha, quem diria hein Ísis? Se prestando a...

Carlos, eu já falei, me solta.

Para de gritar sua fulaninha de merda. Diz logo, hein, fala!

(...)

Mas que...

(...)

Para com isso cara, para...

(...)

O Carlos tá sim lá em cima, ele tá meio mal ainda, mas já tá conseguindo falar.

(...)

A porta tá aberta, pode entrar, Ísis.

Oi.

Oi.

Como é que você tá?

Eu tô.

Sério, Carlos, como estão as coisas? Você tá conseguindo se virar bem?

Você não consegue um segundo que seja na sua agenda apertada pra apenas começar a fazer o
grande esforço de mudar?

Olha só, se ficar...

Desculpa, desculpa, não vai não. Eu sou um babaca mesmo, to sempre reclamando. Ainda mais agora... Mas eu to bem, quer dizer, já to falando pelos cotovelos, como você pode ver.

Isso é bom.

É sim.

Tá tudo bem na agência?

Carlos, não precisa. Fica tranqüilo.

Escuta, eu sinto muito tua falta. Você não faz idéia. Essa cama tem seu cheiro ainda, parece que
você ainda dorme aqui todo dia.

(...)

Eu vou ligar pro Carlos então, espera um minuto.

Peraí, quem é Carlos?

Eu já falei um milhão de vezes o nome dele aqui, Rafa. Não vem com essa agora.

Claro, claro. Não sei o que me deu agora, por um segundo eu tinha esquecido o nome dele.

Desculpa.

(...)

Abaixa um pouco o som da tevê, não to conseguindo te escutar.

A Joana deve ser meio surda, só pode ser, me dá um segundo.

(...)

Bonito, esse Rafael.

É, ele é bem bonito mesmo.

Ele tem quantos anos mesmo?

Carlos, não tem mais razão pra você começar com isso de novo. Passou, cara, passou. Eu estou te recebendo na minha casa, o que mais você quer que eu faça?

Você não vai esquecer nunca daquela merda?

Que merda? Eu já me esqueci dessa tal “merda”. Passou, mesmo.

Eu te conheço Ísis, te conheço muito bem. Se você tomar um gole de vinho, você se descontrola. Eu não sei que diabo eu to fazendo aqui, ainda por cima, expondo a Joana à isso. Eu sei que você vai acabar gritando.

Gritar o quê? Que você tentou me matar naquela porra daquele carro? Se controla você, cara! Eu não quero foder com tua vida, mais do que você tentou foder com a minha.

Tá, chega.

Chega mesmo.

Você sabe que...

Me solta Carlos.

...eu preciso muito de você. As coisas tão sem graça, eu não vou pra cama com ela há duas semanas, não consigo.

Carlos, pára com isso, senão eu chamo o Rafa.

Fica comigo, Ísis, já passou tanto tempo e você sabe que eu mudei.

Carlos...

Porra, fica comigo.

(...)

Rafael, aqui é a Joana, ex-namorada do Carlos. Eu sei que não é hora de tocar nesse assunto, mas se você quiser me encontrar, liga pra minha casa. Eu acho que sei onde você pode encontrar ele e eu não vou ferrar com tudo que eu planejei pra mim mesma carregando isso. Vou ficar aqui o dia todo. Tchau.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

petit bonheur #2

Oi, quanto tempo, nem tinha te visto por aí, sentadinha.

...Triste né? Olha só.

Nem me fala. Nem acreditei quando a Soninha me falou, ontem.

Daqui a pouco é... Melhor deixar pra lá. Como é que tá sua mãe? Eu falei com ela semana passada, por telefone, ela me pareceu tão triste. Ainda tá com aquele problemão todo lá na justiça?

Ela tá bem sim, mas meu irmão tá cuidando de tudo bem, acho que até final do mês que vem, é, se não me engano foi esse o prazo que meu irmão deu, a gente já tem uma resposta do juiz.


Vamos ver no que isso tudo vai dar.

Fala pra ela que vai dar tudo certo, que ela não precisa se preocupar, que Deus se ocupa de tudo, sabe, quando a gente menos espera, ele vem com uma solução pronta, daquelas que a gente menos espera. Sempre foi assim, ele sempre ajudou tanto ela, não vai ser dessa vez que ele vai falhar.

É.

E a Rita tá voltando de vez, semana que vem.

Sério?

Sim, sim. Não tem mais razão pra ela ficar em Vassouras, ela tá muito nova pra ficar socada naquele lugar. Ano passado fui lá, você precisava ver. Eu, que já sou uma mulher velha e não me choco nem me empolgo mais com muita coisa, fiquei muito entediada. Entediada mesmo, sabe? Tinha vezes que nem o rádio pegava direito. Tenho paciência pra isso não. Ainda mais eu, que gosto de ver gente passando pra lá e pra cá, você veja só. Não consegui ficar mui...

Mas ela vai morar na casa de quem?

Ela quem?

A Rita.

A, a Rita, claro. Olha, boa pergunta. Não sei mesmo te dizer. Quem me falou que ela tava voltando foi aquele menino, como é mesmo o nome dele? O...

Você diz aquele menino que fez um filho nela?

É. Esqueci o nome do rap...

Mateus. Não me esqueço nunca.

Mateus! Isso mesmo! Mateus. Então, foi ele que me falou. Acho que ele não deve saber mais coisas não, duvido muito que a Rita queira olhar pra cara dele depois de tanta confusão. Só se ela for dessas mulheres fracas que andam por aí. Mas a Rita, tenho certeza que ela não quer mais saber do Mateus.

É, espero.

Ela nunca mais falou com você?

Nunca mais.

Nunca ligou, nem mandou recado?

Nunca.

Esses anos todos? Puxa, e como é que você tá com isso tudo, meu filho? Quer dizer, eu disse como quem não queria nada sobre a volta dela. Não sabia que ela tinha te esquecido assim tão fácil. Olha, bola pra frente viu, vocês jovens sabem tocar pra frente melhor do que a gente, que não tem mais frente pra olhar. Você, ela, o Mateus, são todos muito novinhos. Você sabe que tem tanta garota bonita por aí querendo ficar com você. Você fez aniversário mês passado não foi? Quantos anos você fez mesmo?

Trinta e um, tia.

Então! Os anos demoram a passar pra vocês, vocês vivem mais do que a gente. E eu digo agora a mesma coisa que eu disse pra sua mãe: Deus sempre tem uma coisa guardada que a gente nem desconfia, nem sonha em ver, mas que aparece logo logo. Confia nisso.

É.

Meu santo Deus, olha quem vem ali! Parece até piada né? Não é que a danada já estava voltando?

Ela tá tão mudada...

É, meu filho, ela não mudou nadinha de nada, você é que se desacostumou a vê-la.

Pode ser...

Deixa a poeira toda baixar, a Glória nem esfriou no caixão ainda. Espera uma semana e vai falar com ela. Deixa com sua tia que eu descubro onde ela está enfiada. Só não vai fazer besteira de novo, pelo amor do nosso senhor Jesus Cristo.

Pode deixar tia, vou lá fora comprar uma coca. Você quer uma também?

Tá tudo bem comigo, fique tranquilo. Nós não sentimos tanta sede como vocês sentem.




(outra foto da série "Antropologia da Face Gloriosa", de Arthur Omar)

terça-feira, 27 de julho de 2010

Comei, este é o meu corpo

Dia 2 de agosto, próxima segunda, às 21h, o Cinemaison exibirá o premiado filme "Comei, este é o meu corpo", do diretor haitiano Michelange Quay, com a presença do mesmo. Para entrar, é só apresentar a carteirinha de sócio. Para quem não a possui, é só ir no site www.cinefrance.com.br e solicitá-la.
Imperdível!!
Lembrando que às 18h, haverá a exibição de "Os amantes constantes", também de graça!

Serviço:
O Cinemaison, cineclube do Consulado Francês, fica na Avenida Presidente Antônio Carlos, 58, centro do Rio.
3974-6644


segunda-feira, 26 de julho de 2010

petit bonheur #1

Ela vem ou não vem, Beto? Eu to suando frio aqui, você sabe como eu sou inseguro pra essas coisas.

Não te disse mais de dez vezes que ela ligou essa tarde dando certeza de que viria? Depois não ligou mais, sei lá, mulher tem dessas coisas.


E eu nem tive tempo de tomar um banho decente e trocar de roupa, cara, eu to fedendo a cigarro demais, eu que me acostumei com o cheiro faz tempo não estou me agüentando mais.


Relaxa, cara, ela também fuma, aliás, eu nunca vi uma pessoa fumar tanto. É um atrás do outro, só de ver me dá vontade de parar com essa porra.


Tenta ligar pra ela de novo, vai que ela desistiu, vai que morreu no caminho.


Vai que ela é tão insegura quanto você e tá sentada em alguma mesa ali atrás só nos observando, esperando chegar o momento certo de chegar até aqui. Já digo que se ela estiver mesmo fazendo isso, você tá fodido, mulher não gosta de cara babaca assim, você tá parecendo uma criança fazendo birra, se segura porra.


Garçom, traz outra cerveja.


E vê se traz gelada dessa vez. Cara, olha aquela gata ali sentada no banco mais alto.


Qual delas?


A de blusinha verde. Putz, que mulherão! E toda doce, olha só como ela abre a boca, cumpade, que isso!


Tira o olho que aquela mina sentada na frente é a namorada dela.


Que mané namorada porra! Eu já vi essa garota uma vez, na festa que o Cláudio deu no apartamento dele. Ela chegou lá pras três horas da manhã com um cara muito do esquisito, falou com o Cláudio, ficou no máximo quinze minutos e meteu o pé. Lembra não? Nunca mais esqueci esse rostinho.


É, então acho bom você ir esquecendo de vez, olha lá.


Caralho cara, que merda hein. Essas garotas não devem saber o que é um pau, só pode ser.


É ela?


An?


É ela, porra, ali, entrando?


Porra Beto, é ela sim. Vou apresentar vocês dois e vou no posto da frente comprar cigarro, valeu? Vê se te controla nas calças!


Faz isso e se manda.


Olá meninos, tudo bem?


Fala Gabriela, demorou hein.


Desculpa meninos, eu peguei um trânsito horrível agora, rolou um acidente, não entendi muito bem, não consegui ver, me disseram, ah, um horror, total.


Gabriela, esse é o Beto, acho que eu já falei dele pra você, né?


Humm, acho que sim. Prazer Beto, Gabriela.


Prazer gata, o Arnaldo fala muito de você.


Garçom, traz outra cerveja pra gente aqui e capricha de novo. Galera, eu vou ali rapidinho no posto comprar cigarro e já venho.


Dois Marlboro vermelho, por favor.


Desculpa, Marlboro acabou de acabar.


Ha, ótimo, “acabou de acabar”.


Haha, é.


Me vê dois, an, Camel então.


Você não tem menor não? Eu to sem troco aqui.


Putz, espera um pouco.


Oi, tudo bem?


Tu-tu-d-do. Quer dizer, oi.


Você quer vir numa festinha que a Samanta vai dar hoje, mais tarde?


An, é, claro. Ou melhor, quem é Samanta?


Ela tá ali fora.


Ah, claro. Mas, desculpa, vocês são namoradas né. Não, quer dizer, nada contra, nada a ver, mas pensei que...


Vocês são muito tapados mesmo! Haha. Vêm ou não vem?


Sim, sim, é, claro!


Ótimo então. Oi, com licença, você tem um pedacinho de papel e caneta? Obrigada.


A gente te espera lá então, vai ser bem legal. Se o seu amigo quiser ir também com aquela menina que ele está conversando no bar, serão super bem vindos.


Ok, claro. Desculpa, você tem falado com o Cláudio? Ele deu uma boa sumida.


Tem tempo já que eu não tenho notícias dele. Se você o vir primeiro, fala que mandei um beijo.


Claro, pode deixar, aliás, quantos “claros” eu falei hoje.


Haha, relaxa.


Até mais tarde então.


Um beijo.


Senhor, seu troco.





(foto de Arthur Omar, da série Antropologia da face gloriosa)

quinta-feira, 22 de julho de 2010

amputações #2


A senhora Grubach nunca mais pôde recuperar-se do achincalhe sofrido na rua da Aparição, local onde morava há mais de duas décadas seu marido não suportaria tamanha afronta deus às vezes sabe o que faz levando os iníquos para perto dele mais cedo do que esperamos a senhora Grubach não podia imaginar que sua agulha de costura a colocaria em um mundo estranho de devaneios nunca experimentados noites longas no balançar gostoso da cadeira do cômodo de trás e gritinhos fundos mudos na véspera dos nasceres do sol. O procurador de seu marido não desistia de ir lá constantemente a casinha do interior talvez dessa à velha senhora um gosto a mais em estar viva e ela nunca fora dada a assinaturas e tempos altos lendo papéis na luz do abajur da sala e enquanto o procurador esperava a senhora Grubach achar a agulha no chão antigo de linóleo marromescuro, sua corpulência danada trouxe realívios bons dourados ziguezagueantes. Foram dias de modorra boa vermelha a tarde reconfortante do exílio de meses com as mãos de mulher ossuda transmutando-se nas pistas naturais da entrega da carne aos sobressaltos do amor tardio.
(still de "Hanami - Cerejeiras em flor", de Doris Dörrie)

sábado, 17 de julho de 2010

amputações #1


Betinho, depois de dois anos juntando dinheiro, consegue comprar a sua moto setecentas cilindradas na concessionária do pai da Carla. São oito meses de vento na cara e uns cem xingamentos grosseiros dos motoristas e a moto rodopia duas vezes no ar e encontra o chão, impacientemente. Betinho para de beijar o chão mais de cem metros à frente, sem perceber que o golpe contra o solo leva uma de suas pernas. Adormece profundamente na dor que se espalha por todo seu corpo, como as vozes de um coral encontram rapidamente o ar pesado de uma igreja. A ambulância chega ao local depois de quarenta minutos, a Avenida Brasil completamente engarrafada, já passa das seis horas da tarde. Betinho não acorda e talvez não consiga estar bem para pegar um cinema com a Carlinha.

(still de "Sete homens invisíveis", de Sharunas Bartas)

sábado, 10 de julho de 2010

chegando
os meus olhos arrefecem
dançarino só no meio da pista para caminhões de carga

há duas semanas atrás três mulheres vestidas de saia vermelha idênticas me procuraram nas ruas da cidade torta para me perguntar qual era o segredo que eu teimava em não contar a ninguém

ontem elas voltaram bateram à minha porta e fizeram o sacrilégio de apenas me fitarem de forma rápida

todo dia às 3 horas da tarde elas dançam suas valsas e eu as observo como quem passa por ali sem rumo

à noite, elas cantam no meu ouvido, bem baixinho:
alors, peut-être je viendrai chez toi chauffer mon coeur à ton bois

e sinto mais calor

quinta-feira, 8 de julho de 2010

I´m not there

“A escrita desaparece primeiro, através de um método de alturas, tamanhos. A letra vai ficando cada vez menor. Se não fores capaz de parar de escrever, pelo menos que os teus textos ocupem menos espaço no mundo. Eis a microescrita. Quem escreve muitas letras numa minúscula folha, escreve muito ou pouco? Esta é uma questão, apesar de tudo, significativa. Trata-se de produzir uma escrita liliputiana.”
Vontade de sumir eu acho que todo mundo já teve, tem, ou terá. E este sumir pode ser sinônimo de ir para outros lugares, não ser reconhecido, recomeçar uma vida nova no mesmo lugar ou simplesmente dar um fim à própria vida. Eu já tive, tenho e terei vontade de tomar as quatro atitudes enumeradas, às vezes até ao mesmo tempo. Mas, nas minhas tentativas frustradas de desaparecimento, descobri como esta tarefa é difícil, praticamente impossível.
Confesso que eu acho péssima a sensação de fazer falta para alguém. Talvez, horrível mesmo seja fazer falta para apenas uma pessoa. Uma vez por semana eu me lanço na empreitada. Vou desligando tudo que me liga ao mundo exterior (lê-se o lado de fora da minha casa) até ficar totalmente incomunicável. Vou desligando as luzes de casa aos poucos, até deixar tudo no breu mais acolhedor que possa existir. Os aparelhos de televisão (infelizmente são inúmeros aqui em casa) não podem ficar nem no standby, senão eles produzem um som de freqüência altíssima, que só pode ser percebido quando no mais profundo silêncio, e esse ruidozinho me tira completamente do sério. Mas, quando eu menos espero, estou correndo para o computador, quebrando abruptamente o pacto de silêncio que havia feito comigo mesmo e me dano a gritar aos ventos, na esperança de algum sinal de vida fora desse buraco.
O escritor Enrique Vila-Matas quis sumir. Coitado, passou 410 páginas tentando e não é que o moço conseguiu? O problema é que não estar em lugar nenhum traz para a vida fantasmas que é bem melhor não enxergarmos nunca. Vila-Matas ficou tão sozinho, mas tão sozinho, que virou o Doutor Ingravallo e não tirava da cabeça uma única meta, muito insólita, por sinal: ir até o manicômio de Herisau e visitar o túmulo do escritor alemão Robert Walser, talvez até morrer como ele, caído na neve no dia 25 de dezembro de um ano qualquer. Se a solidão me levasse a projetos tão, digamos, grandiosos, não haveria voz que tivesse força suficiente para me tirar da letargia.
Se bem que as coisas conspiram para o meu afastamento total. Assisti, um dia desses, a um filme muito pouco conhecido no Brasil, chamado Na cidade branca (Dans La ville blanche, 1983), no qual o excelente Bruno Ganz (o ator que interpretou Hitler, no também excelente A queda – as últimas horas de Hitler) faz o papel de um marinheiro que resolve abandonar o navio quando este aporta em Portugal. O sujeito se instala em um hotel barato e simplesmente não faz nada (ou simplesmente começa a viver). Ele se envolve com a atendente do bar do hotel e de vez em quando manda cartas para sua mulher, na Suiça, dizendo que a solidão em Portugal é branca. Na verdade, eu acho que ele quer também dar uma desaparecida.
O próprio Vila-Matas/Ingravallo/Pasavento nos dá uma pista sobre a origem desse desejo súbito e fulminante, que nos ataca eventualmente: “suspeito que paradoxalmente toda essa paixão por desaparecer, todas essas tentativas, digamos, suicidas são por sua vez desejos de afirmação do meu eu.” Depois dessa resposta um tanto infantil, os três se perdem na labiríntica Rue Vaneau. Sem a minha companhia.
Ainda bem.
PS: Não sei se é o microruído da TV desligada ou a confusão de sons da própria TV o que me tira mais do sério.

Kazuo Ohno

Apenas uma singela homenagem a este grande artista!