quarta-feira, 30 de junho de 2010

Coração apertado




É extremamente empolgante encontrar na sua frente um exemplar de literatura que faça você lembrar que uma das principais finalidades do texto (ficcional, no caso, já falo logo!) é trazer o desconcerto, instalar o mal-estar, aquele silêncio inquietante, que acompanha por dias ou talvez (tomara) a vida toda. E foram todas essas sensações que a leitura de Coração apertado, da escritora francesa Marie NDiaye me trouxe.

Vamos lá:

A professora de meia-idade Nadia começa a ser tratada com hostilidade pelos seus alunos, pelos diretores da escola, pelos vizinhos, pelas pessoas na rua, sem um motivo claro que justifiquem as agressões. Seu marido, Ange, aparece em casa doente, com uma ferida também aparentemente sem explicação. O vizinho do casal, o senhor Noget, se dispõe a ajudar Nadia, apesar dele saber que ela o despreza. Enquanto Nadia tenta encontrar uma razão para o monstro que se instaurou em sua vida, o senhor Noget alimenta o casal com comidas gordurosas, em fartura.

Nadia se perde pelas ruas de Bordeaux, cidade que ama e vive já há muito tempo. Sua relação com o filho, Ralph, mostra-se cada vez mais conturbada, ao passo que ela demonstra bastante afeto pelo ex-namorado do filho, o delegado Lanton. O nome da filhinha de Ralph, Souhar, a irrita profundamente. A ferida de Ange só piora. Seu ex-marido reaparece com ofensas crescentes sobre a personalidade de Nadia. O bonde não dá atenção aos seus sinais no ponto. Nadia sente muita fome e se humilha cada vez mais.

Essa breve sinopse faz a gente imaginar que o romance é construído com frases ágeis, de efeito, carregadas de certo pavor e nonsense. Nada disso. O aperto no coração que sentimos vem de frases longas, de movimentação sutil, delicada. O texto de NDiaye é tenso e silencioso, os gritos nos chegam homeopaticamente. Quando nos damos conta, o absurdo já está instalado na nossa relação com o romance, mas, diferente dos personagens kafkianos, que parecem aceitar sem muitas perguntas as situações esdrúxulas nais quais eles se encontram, é inevitável nos perguntarmos que mundo é aquele em que Nadia vive, o que desandou, se somos nós que lemos a narrativa pelos olhos de quem sofre de uma... síndrome do pânico.

A escritora Beatriz Bracher, que escreveu o texto de orelha do romance, nos recomenda esperar dois dias para entendermos melhor o livro e nos garante que seremos pessoas mais felizes duas semanas após termos terminado a leitura e termos sofrido o pão que NDiaye amassou. A única coisa que posso dizer é que este texto aqui está sendo escrito umas três ou quatro horas após eu ter finalizado minha leitura e adianto, para aqueles leitores mais sensíveis, que minha cabeça não para de girar. Hoje mesmo estive conversando sobre Coração apertado com um amigo e eu disse para ele que eu estava com muita raiva pois uma entre duas coisas iriam acontecer: ou a Marie NDiaye não daria um motivo para tudo que estava acontecendo à Nadia (o que seria plenamente compreensível, uma vez que estamos falando aqui de literatura)* ou ela daria sim um motivo e talvez a leitura não fosse tão satisfatória. Obviamente não darei o resultado da loteria, I hate spoilers, mas o desconforto causado é tão grande que qualquer caminho tomado pela escritora seria insuficiente para apaziguar meus ânimos.

Eu usei o termo "kafkiano" em algum ponto deste texto, mas o absurdo da escrita de Marie NDiaye é de um outro tom. Seu universo fantástico/realista é nosso, contemporâneo, nos chega rápido. Mais uma vez uso este espaço para mostrar a minha indignação com alguns críticos, do mundo todo, que teimam em reduzir o texto literário a uma dimensão política, social, denunciativa de algo. Marie hoje mora em Berlim, em um auto-exílio, não tendo mais aguentado ver o rumo que a França está tomando com a política de extrema-direita do Sarkozy, que, segundo ela, faz com que alunos saiam algemados das escolas por serem imigrantes ilegais e que a obsessão dele por estabelecer, no século 21, o que seria a identidade francesa, não faz sentido algum. Por isto, há quem veja em seus romances, particularmente neste, um retrato da sociedade francesa, xenófoba, violenta e nem um pouco democrática. OK. Mas que a literatura, acima de qualquer questão que esteja na pauta do dia, tem como papel fundamental sacudir as bases de nossas (felizmente) poucas verdades, isso se faz evidente neste romance. Espero, pelo menos, me sentir realmente mais feliz depois de duas semanas. Aliás, se isso acontecer antes, melhor.


* plenamente compreensível é diferente de plenamente aceitável


PS.: Não estou muito habituado às novas regras de ortografia ainda, deixo claro!