segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Há quem prefira urtigas




Acabo de ler e me emocionar muito com uma novela do escritor japonês Junichiro Tanizaki, falecido em 1965, entitulada "Há quem prefira urtigas" (Companhia das Letras). O livro, de enredo aparentemente simples, me lembrou inúmeras questões que eu fui deixando para trás na minha pouca vida ainda, daquelas que você não entende porque deixou para trás. Felizmente ou infelizmente, esse texto veio a calhar.

Ao esclarecer o enredo, antes de mais nada, é preciso fazer algumas considerações pessoais sobre meu contato com o Japão:

Quando as pessoas falam sobre cultura japonesa, o que primeiro vem à mente são os mangás e animes, os super-heróis bizarros e o karaokê. Apesar de não ser um pesquisador profundo da história e cultura japonesas, sempre que me lembro deste país, são as imagens plácidas dos filmes do Ozu que primeiro surgem na mente. Com algum esforço, aparecem as imagens dos dançarinos de butô, com seus movimentos singelos, orgânicos e cheios de significado. Acompanhando tudo isso, me chegam "Ninguém pode saber", o fantástico filme do Hirokazu Kore-Eda, as cerejeiras, a chuva torrencial de "Shara", de Naomi Kawase, a fúria do Monte Fuji de um dos episódios de "Sonhos", enfim, imagens, conceitos e preconceitos com raízes profundas no cinema produzido lá.
Vale salientar que, somado a todos esses filmes e espetáculos teatrais, vem uma profunda incompreensão do que poderia ser um elo geral que uniria todas essas estórias, uma característica, marca, ideia, que pudesse me colocar em contato mais íntimo com a forma de pensar e viver japonesa.
Não foi diferente ao lidar com "Há quem prefira urtigas". Quando o livro veio parar nas minhas mãos, minha primeira reação foi de repúdio pois eu considerei ser praticamente impossível uma tradução que desse conta de toda a complexidade de significado da língua japonesa, ainda mais numa obra literária. Pensei que todas as nuances características de um romance ficariam apagadas, embotadas e que o contato de qualquer leitor que não tivesse o mínimo de conhecimento do Japão seria extremamente superficial.
Para a minha grande surpresa, isto não se deu. Mesmo não conhecendo absolutamente nada do idioma japonês, percebi que houve um primoroso trabalho de tradução por parte de Leiko Gotoda, ao tentar com sucesso algumas aproximações entre o japonês e o português. Em algumas passagens, porém, fica uma sensação de "acho que não foi bem isso que ele escreveu", como num trecho no qual Tanizaki descreve o penteado de Ohisa, a amante do pai de Misako, e lemos que a moça prendeu o cabelo da forma "que os japoneses fazem". Aliás, eu acabei me esquecendo de falar mais detalhadamente sobre o livro.
"Há quem prefira urtigas" trata da vida de Misako e Kaname, um casal típico do Japão dos anos 30, que há muito tempo não se ama mais. Eles tomam a decisão de se separar de forma pacífica. Mas alguns obstáculos se colocam diante deles: o filho Hiroshi, que já mostra sofrer com o claro distaciamento dos pais; o pai de Misako, um ancião entusiasta do teatro Bunraku; e acima de tudo, a própria covardia do casal. Misako já tem um amante, Aso, e também toda uma vida sexual e afetiva com ele. Kaname encontra-se com Louise, uma prostituta polonesa, e a promete tirar da vida no bordel para começarem uma nova vida juntos. Entretanto, Misako tem medo de que Aso a abandone com o tempo e Kaname receia que Louise pegue seu dinheiro e volte para a Europa. A personagem que aparece para empurrar o casal para uma decisão sensata e corajosa é o tio Takanatsu, japonês que vive na China e tem mais contato com o mundo ocidental, uma espécie de anjo exterminador que modifica a vida de todo mundo.
O romance me lembrou demais as peças de Tchekov, já que Misako e Kaname são duas pessoas paralisadas pela covardia e pela própria inércia de suas vidas. Eles são incapazes de dar um passo a frente e suas decisões são tomadas com extrema racionalidade, medindo todas as consequências possíveis. Parecem as três irmãs que nunca irão a Moscou. E eu toco no assunto do teatro neste ponto, porque a novela inteira é permeada por idas a apresentações do teatro Bunraku, o famoso teatro de bonecos japonês. Nesta modalidade teatral, os bonecos são manipulados por, em média, três pessoas, e contam geralmente fortes histórias de amor em forma poética, o joruri, que são cantadas pelo tayu ao som do shamisen. Era uma arte já em decadência no Japão do começo do século 20, já que o país estava começando um processo de ocidentalização dos costumes. E isto é muito bem retratado no romance. As apresentações contam com a presença de poucas pessoas na platéia e Kaname diz conhecer muito pouco desse tipo de teatro.
Mas o que me chamou mais atenção é que, da mesma forma que os bonecos, que obviamente não têm vida própria, ganham vida nas mãos dos zukai (manipuladores), as personagens também parecem movidas por uma força estranha, exterior a eles, e essa força, essas mãos que os seguram, parecem sair do corpo deles em alguns momentos, fazendo os bonecos humanos perderem a vida e cairem no palco, sem ter mais nada a dizer e cantar.

Mas por que a separação era tão difícil? Afinal, já não eram duas criancinhas indefesas... Por que temiam pôr em prática o que a razão apontava como melhor? Pensando bem, era apenas uma questão de romper os laços com o passado. A tristeza seria momentânea e diminuiria com o tempo, conforme viam acontecer com outras pessoas. "Nós dois não tememos o que nos reserva o futuro, e sim o momento da separação", concluíram com um sorriso.

Não vou ficar falando sobre o efeito que este livro teve sobre mim, mas, dependendo da forma como ele é lido, pode funcionar como um baita soco na cara.

Para quem quiser ter uma ideia de como é o teatro Bunraku, um vídeo que achei no youtube, com algumas explicações inciais sobre a arte:



Um comentário:

  1. Muito legal a sua análise, gostei bastante das curiosidades que colocou sobre o Japão e algumas partes em relação à cultura japonesa e ao livro. Me interessei ainda mais em ler o livro, além de ser pelo título que achei fantástico!

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